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terça-feira, 2 de novembro de 2010

Pobres e solidários

Pesquisas revelam o perfil sócio-econômico dos evangélicos brasileiros e comprovam sua luta para escapar da miséria.

Por Valter Gonçalves Jr

Traços importantes do perfil dos evangélicos no país foram revelados com a divulgação da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003, amplo levantamento sócio-econômico e cultural com base no nível de consumo. Os números da POF, apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, e publicados há dois meses, mostram como vai a vida dos brasileiros de todas as classes sociais, e cruza isso com indicadores como escolaridade, região de origem e religiosidade. A imprensa deu certo estardalhaço a um aspecto revelado na pesquisa: a despeito das pregações na TV com promessas de prosperidade, os evangélicos pertencem, em média, à faixa mais pobre da população brasileira, enquanto os que crêem no espiritismo figuram como os mais ricos.


Diante de sua fragmentação, os crentes foram divididos em três grandes grupos na POF: os pentecostais, os “de missão” (para identificar os tradicionais) e um terceiro segmento, os pertencentes a “outras confissões evangélicas” (denominações classificadas, corretamente ou não, como neopentecostais). Em média, as famílias evangélicas pentecostais apresentaram renda mensal de R$ 1.270. Enquanto isso, as católicas ganham R$ 1.790. Em seguida vêm os integrantes das “outras evangélicas”, que percebem R$ 1.690, e as evangélicas tradicionais, com média de R$ 1.994. No topo da lista, surgem os espiritualistas, cuja renda familiar mensal chegaria a R$ 3,8 mil.
A pesquisa mostra que, mesmo estando entre os mais pobres, os evangélicos são também os religiosos que mais fazem doações – os tradicionais dízimos e ofertas – a seus respectivos grupos. Esses dados estão computados entre “pensões, mesadas e doações”. Os crentes de “outras evangélicas” ultrapassam os de todas as confissões quando o assunto é contribuir com a obra de Deus: são R$ 59,16 por mês. Neste quesito, ficaram bem à frente dos adeptos do espiritismo, que contribuem com pouco mais de R$ 42. Interessante notar que as famílias pentecostais, que colaboram com suas igrejas numa faixa por volta de R$ 22 mensais, apresentaram renda abaixo de seus gastos mensais em 31 reais.

Os números do IBGE não permitem avaliações apressadas de quem imagina que os crentes estejam empobrecendo e deixando para trás as boas condições para prosperar, observadas por Max Weber na sua clássica obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, escrita no início do século passado. “O que Weber apontou foi o caminho inverso: ele identifica entre os burgueses um número maior de protestantes, o que é diferente da premissa de que ser protestante é igual a pertencer à burguesia. Não há uma relação causal, de que ser protestante é igual a prosperar”, declara o doutor em sociologia Alexandre Brasil Fonseca. Ele salienta que o estudioso alemão percebeu, entre os puritanos, características que os impulsionavam a prosperar, já que naquele momento a graça de Deus era percebida pela qualidade de vida deles. “Ser um homem dedicado, honesto e trabalhador sinalizava, pela sua vida cotidiana, que aquele indivíduo era de fato um salvo, um predestinado. Isso não quer dizer que a pessoa seria rica, mas que teria um padrão melhor”, explica.

Opção pelos pobres – Os dados da POF se somam aos da detalhada pesquisa Economia das Religiões, feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e divulgada em abril deste ano. O coordenador do levantamento, Marcelo Neri, afirma que as condições que favoreciam a prosperidade dos protestantes retratados por Weber não se transferem, automaticamente, para o Brasil. Por outro lado, não se sabe onde a conversão dos pobres brasileiros irá desembocar. Os dados da FGV demonstram que, apesar de figurarem na faixa mais carente da população, os evangélicos, em média, não estão na extrema pobreza – caso dos pentecostais, que segundo a pesquisa, são cerca de 15% dos trabalhadores que ganham entre dois e quatro salários mínimos, e chegam a apenas 10,89% entre os que recebem até dois mínimos. Mais: a FGV constatou o aumento do número de pentecostais entre os integrantes da “nova pobreza” brasileira, a periferia desassistida das grandes metrópoles. Essa camada da população seguiu dois caminhos opostos: ou buscou novas respostas religiosas nas igrejas evangélicas ou tornou-se sem religião. Já a “velha pobreza”, de perfil rural, continuou católica.

Alexandre Brasil lembra que Weber identificou toda uma rede de apoio social que as igrejas formavam como estratégia de sobrevivência. “Durkheim já falava isso no século 19: é impossível imaginar que todos os dias milhões de pessoas são enganadas por todas as religiões. Isso não existe. É preciso reconhecer aspectos positivos. Essas organizações sociais sabem se comunicar com os mais pobres, que procuram ali um espaço de defesa, de tratamento e segurança.” O sociólogo destaca que essa gente encontra o que busca. “O evangélico, que se sente contemplado e fortalecido por sua fé, pensa: ‘Vale a pena colocar até mesmo o meu dinheiro na igreja’.” Para Alexandre Brasil, diante de um país tão desigual, “os evangélicos têm o imperativo de ter a opção pelos pobres”.

O crescimento dos evangélicos na base da pirâmide social do país representa, no entender de Alexandre, uma grande oportunidade para as igrejas, dada a chance de promover transformações sociais. “É inegável a inserção social e a capilaridade das igrejas em termos de assistência social, de ações de saúde e participação em grandes e pequenos projetos”, diz o estudioso, observando a presença, na liderança evangélica, de pessoas com origem nas classes populares. “Os crentes são pobres, de periferia. E os líderes vêm daí também. Então, há uma afinidade maior com gente de origem pobre”. Por isso mesmo, muitas igrejas podem virar pólos de transformação social. “Há missionários que, sozinhos, com orçamento apertado, vendendo o almoço para pagar o jantar, conseguiram mudar indicadores sociais de comunidades e até de cidades inteiras”, afirma o pastor presbiteriano Fabrício Cunha, que faz doutorado em missões urbanas e comandou o Fórum Jovem de Missão Integral, um congresso que reuniu em junho de 2007, em Itu (SP), a nata dos novos missionários evangélicos – gente com grande preocupação social.

Para Cunha, as demandas sociais são enormes no país e as congregações estão despertando para a realidade das periferias, onde os pentecostais ganham espaço. “Vemos nas Escrituras que Deus tem uma preferência pelo pobre, mas não quer que ele fique assim. E quando esse pobre encontra o padrão evangélico, que é um padrão ético alto, ele prospera, pois passa a ter a vida mais regrada. Controla mais o orçamento, busca informação”, argumenta. Ele critica, porém, a idéia de colocar todos os crentes no mesmo barco. “Dizer que há uma Igreja Evangélica hoje no Brasil é uma mentira. Não há legitimidade para falar em nome de uma instituição única”, destaca, lembrando de grupos com atuação oposta. “Há gente, louca ou mal intencionada, que leva as pessoas a fazer votos que começam em R$ 10 mil e chegam ao vale-transporte”, lamenta.

“De bolso para bolso” – No entender de José Miranda Filho, presidente da Aliança Bíblica Missionária (ABU), é muito simplista imaginar que a grande quantidade de doações, detectadas nas pesquisas da FGV e do IBGE, seja produto do oportunismo religioso de lideranças corruptas. “Não é possível mensurar a qualidade da esperança dos que contribuem com coração aberto, sendo ricos ou pobres. Há quem doe caindo no discurso de comprar a bênção; mas há quem tem fé no Deus bom que não abandona seus filhos”, declara, distinguindo pobreza de miséria, em que as condições de vida ficam extremas. Ele sublinha que a maior parte das doações, entre os evangélicos, não vão para as instituições, mas sim “de bolso para bolso”, já que os crentes ajudam uns aos outros. “Solidariedade não passa pelo caixa das igrejas. Grande parte dos recursos não estão ao dispor delas”, explica.

Miranda salienta que, entre os evangélicos, é ainda mais comum doar tempo e atenção, em trabalhos voluntários, do que dinheiro. “Conheço o exemplo de Pentecostes, cidade do interior do Ceará, onde um amigo cristão, doutor em química, resolveu doar os seus fins de semana, durante anos, para alfabetizar e preparar adultos para a universidade.” Em pouco tempo, conta, aquele projeto, que começou com apenas dois alunos, conseguiu alcançar 500 pessoas. “Quanto se gastou naquela iniciativa? Pouquíssimo. Mas, no ano passado, 80 daqueles alfabetizados fizeram vestibular, e vinte passaram para a Universidade Federal do Ceará”, comemora. Miranda, pós-graduado em economia, faz restrições à idéia de avaliar a qualidade de vida apenas em comparações relacionadas ao nível social e à renda. “As pesquisas sócio-econômicas colocam o foco na horizontalidade dessas relações de classes, não na verticalidade da relação com Deus. Não conseguem mostrar o nível de verdadeira qualidade de esperança, de alegria, de fé.”


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