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sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Esperança para a Índia

Carlos Fernandes

Há dez anos, a missionária brasileira Ana M. Sarkar atua para salvar corpos e almas na Índia
Shunii é uma divindade do mal. Todos os sábados, os devotos devem lhe depositar oferendas, quase sempre na forma de alimentos como frutas, verduras e arroz. Essa é a única maneira de aplacá-lo e assim evitar suas ações maléficas. Não é difícil encontrar Shunii – sua figura grotesca, pintada de azul, ornamenta pequenos altares instalados em esquinas, ruas e praças na índia, tanto nas grandes cidades como nos pequenos vilarejos. Famílias inteiras saem em procissão até os nichos com imagens de Shunii, que são fabricadas e distribuídas aos borbotões pelo país. às vezes, é preciso recorrer aos serviços de um guru, que recebe donativos para oficiar cerimônias em homenagem à entidade. Feito o culto, as pessoas podem voltar sossegadas às suas casas, pois consideram-se a salvo dos infortúnios que podem ser provocados pela ira do deus mau. Pelo menos, até a semana seguinte, quando será preciso repetir o rito.Assim como Shunii, dezenas de milhões de divindades são veneradas na índia, uma nação com 1,1 bilhão de habitantes. Cerca de oitenta por cento dessa imensa população declara-se seguidora do hinduísmo – muito mais que um sistema religioso, trata-se de um conjunto de crenças, tradições e superstições tão diversificado como o povo indiano. Lá, convivem centenas de etnias e fala-se nada menos que duas mil línguas e dialetos. A presença cristã, minoritária, desperta sentimentos que vão desde a intolerância ao ódio puro e simples, expresso em atentados religiosos que vêm aumentando no país. Embora pratique um regime democrático e disponha de tecnologias avançadas, a índia é uma nação que se rege por tradições ancestrais inalteradas em pleno século 21. A sociedade é dividida nas chamadas castas, sendo a maior delas a dos párias, reunindo indivíduos que vivem na pobreza absoluta e sequer devem ser tocados. Acredita-se na lei do carma, segundo a qual os sofrimentos são resultado de maus atos praticados em vidas anteriores. Por isso, os hindus devem conformar-se com seu destino, pois seria impossível mudá-lo, e aguardar melhor sorte num ciclo sucessivo de reencarnações. Pois foi diante deste quadro de obscurantismo espiritual que a missionária brasileira Ana Maria Miranda Sarkar se deparou quando chegou pela primeira vez à índia, em 1996. 'Aquele era um mundo novo e assustador para mim. Fiquei perplexa com o semblante das pessoas, que pareciam acuadas', lembra a carioca de 43 anos, que lidera o ministério Harvest Today (Colheita Hoje), uma organização não-governamental de orientação evangélica instalada em Dakshin Barasat, a 50 quilômetros de Calcutá – cidade indiana com mais de 16 milhões de habitantes e todas as mazelas de um mega-aglomerado urbano de Terceiro Mundo. Harvest Today é a concretização de um sonho missionário de Ana Maria e hoje atende mais de 300 famílias carentes, prestando assistência na área educacional e de saúde. Criada no Evangelho, Ana Maria teve trajetória semelhante à de boa parte dos adolescentes e jovens crentes. 'Eu vivia mais pela fé de meus pais', lembra. Até que, aos 19 anos, o encontro genuíno com Cristo acabou mudando o rumo de sua vida. Após um período de intensas atividades na igreja que freqüentava, Ana sentiu um chamado missionário. 'A princípio, acreditei que deveria seguir para a França', conta. A fim de se preparar devidamente para a obra, ela fez cursos na área de missiologia, estudou idiomas e especializou-se em enfermagem. Mas seu campo não seria a iluminada Europa, e sim, uma das regiões mais pobres do mundo. 'Certa vez, folheando uma revista, vi uma foto chocante. Mostrava uma criança indiana miserável, chorando ao lado do cadáver da mãe.' A partir dali, ela começou a buscar a orientação do Senhor e orar pela índia. 'Deus revelou que me daria aquela nação como herança', frisa a missionária. 'Escravidão ao diabo' – Depois de um período no Reino Unido, afiando o inglês, Ana foi 'espiar a terra'. Passou três meses na índia, fazendo contatos com cristãos locais e estudando a melhor maneira de iniciar um trabalho social e evangelístico no país. A questão legal foi uma primeira barreira. Embora tenha se apresentado como profissional de saúde disposta a auxiliar a população local, só mesmo um milagre, no entender dela, tornou possível a obtenção de um visto para cinco anos. 'Isso é muito raro de acontecer', diz. Ligada à Igreja Presbiteriana Betânia, de Niterói (RJ), ela foi enviada definitivamente como obreira comissionada e instalou-se em um apartamentinho alugado em Calcutá. 'Eu não conhecia ninguém ali e não falava nada em bengali. Caminhava pelas ruas, contemplando a dura vida que as pessoas levavam. Era de apertar o coração.' Sem saber exatamente o que fazer, começou a pedir a Deus que enviasse pessoas até ela. A súplica foi atendida na pessoa de Manju, uma adolescente que veio em busca de trabalho. Manju, paupérrima, vivia numa aldeia próxima. 'Ela acabou ficando. Fazia pequenos serviços domésticos, comia comigo e me observava atentamente', conta Ana.A garota acabou se tornando o primeiro fruto do trabalho da missionária. 'Em pouco tempo, ela aprendeu um pouco de inglês a partir das nossas conversas e de alguns dicionários de bengali que eu tinha. Um dia, comprei uma Bíblia em sua língua e dei a ela.' Ana Maria explica que o processo de evangelização de um indiano é longo e trabalhoso. 'Não é nada fácil para uma pessoa que pratica o panteísmo aceitar que deve adorar um só Deus', explica. 'é preciso conquistar sua confiança e desenvolver uma amizade.' Pois foi com esta fórmula que Ana levou Manju à conversão a Cristo. Logo depois, surgiu um rapaz interessado em aprender inglês. Percebendo a oportunidade, a missionária abriu um curso que atraiu outros jovens. 'Um belo dia, quatro meninas maltrapilhas bateram à porta mendigando comida. O estado delas era deplorável, tive que controlar a ânsia de vômito', admite. Mesmo contando apenas com a bolsa mensal de US$ 1 mil fornecida por sua igreja e ofertas eventuais, Ana Maria comprou-lhes roupas, um kit básico de higiene e comida. Em pouco tempo, o apartamento já abrigava o curso de inglês, uma escolinha bíblica para crianças e uma improvisada clínica. Cada vez mais pessoas apareciam em busca de ajuda material – mas uma outra clientela chamou a atenção de Ana Maria: a de mulheres desesperadas com a própria realidade. 'As meninas, principalmente, sofrem muito na sociedade indiana. A cultura local privilegia a figura masculina. As mães que têm filhas são discriminadas; afinal, meninas são um peso para suas famílias, que precisam pagar dotes aos futuros maridos.' A obreira brasileira conviveu com crianças abandonadas, mulheres violentadas e esposas espancadas pelos próprios companheiros. 'Ao contrário do que muitos ocidentais imaginam, os indianos não vivem naquela aura de espiritualidade exótica. O que existe é escravidão ao diabo, mesmo. O número de suicídios é enorme, assim como o de mortos pela fome e por doenças. O cheiro de corpos cremados é horrível', afirma. Passo de fé – Quando começou a visitar as famílias de 'suas meninas', como faz questão de dizer, Ana conheceu a aldeia de Dakshin Barasat, que se tornou uma espécie de cabeça de ponte de seu ministério. Ali, em meio à carência generalizada, ela encontrou espaço para montar uma clínica e uma escola. Os habitantes, muitos dos quais jamais haviam tomado um antibiótico, aglomeravam-se à porta. 'Havia muito o que fazer. Eu dava vitaminas, fazia pequenos curativos, ensinava hábitos de higiene.' Um médico local, também cristão, foi contratado para os atendimentos mais complexos. Centenas de pessoas apareciam a cada dia. 'Eu as atendia e orava por todos em nome de Jesus. Logo, a casa ficou conhecida como 'hospital de Jesus''. àquela altura, uma equipe de obreiros locais, frutos da missão, já colaborava com o serviço. Surgiu uma igreja. 'Descobrimos estabelecimentos que vendiam comida e remédios mais baratos. Aquecemos até a economia local', brinca. Mas além de abrir corações para a Palavra de Deus, o ministério também era um risco para Ana. Grupos de religiosos radicais, tanto hindus como muçulmanos, insatisfeitos com o florescimento do trabalho cristão, passaram a intimidar a missionária. Um dia, no trajeto entre Calcutá e a aldeia, Ana Maria foi jogada do trem. 'Só não fiquei paraplégica por milagre, pois fraturei várias vértebras', conta. Sem ninguém para socorrê-la – o hinduísmo inspira nas pessoas um fatalismo que beira a indiferença –, ela se deslocou sozinha até o hospital mais próximo, muitos quilômetros e estações depois. Com a saúde e o ânimo abalados, ela confessa que pensou em desistir. 'Os medos que me assaltaram na minha chegada à índia voltaram com mais força. Mas sentia o Senhor confirmando meu ministério naquele lugar', lembra, emocionada. De volta ao Brasil para um período de recuperação, Ana Maria foi informada de que sua igreja não a manteria mais. 'Meu pastor, temendo por minha vida, disse que eu não voltaria sob sua responsabilidade.' O jeito foi tomar uma atitude de fé e retornar mesmo sem garantia de sustento, já que as ofertas que apareciam não seriam suficientes para manter tudo funcionando. Mas a providência divina veio na forma da solidariedade de um alto funcionário do governo indiano, já aposentado, que conheceu o trabalho da brasileira e ofereceu-lhe apoio para institucionalizar o ministério. 'Até então, funcionávamos em uma base improvisada. A legalização nos capacitou a fazer convênios com outras entidades.' O retorno à terra que passou a amar também teve outras surpresas para Ana. Um cristão que a conhecera havia mais de três anos a pediu em casamento. 'Relutei um pouco', conta, meio encabulada, 'mas percebi naquilo a vontade do Senhor para minha vida.' A união com Malay Sarkar proporcionou a Ana a cidadania indiana e a garantia da permanência no país. 'Antes, era preciso sair e retornar para renovar o visto, um processo cansativo e dispendioso. Agora, isso acabou', comemora. A trajetória de fé de Ana Maria a tornou conhecida e requisitada. Ela já esteve nos Estados Unidos, na Europa e até no Japão falando de seu trabalho. Em todas as ocasiões – como na temporada que passou no Brasil, entre dezembro de 2007 e março deste ano, visitando a família e percorrendo igrejas de vários estados –, fala da urgência do trabalho missionário entre povos não-alcançados e busca patrocinadores para Harvest Today. Pelo sistema da missão, é possível sustentar uma criança, dando-lhe educação, moradia e alimentação, com cerca de R$ 30 mensais. 'Aqui, pode ser pouco, mas na realidade da índia, é muito', revela. Mais que auxílio, os assistidos pela missão ganham uma esperança. Para gente como a jovem Manju e milhares de outros indianos para quem o ministério de Ana representou a diferença entre a vida e a morte, Shunii e os milhões de deuses do panteão hindu não representam mais uma ameaça – pois eles, agora, podem descansar à sombra do Onipotente.


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