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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Passado esquecido

Apesar dos mais de 150 anos de uma história intensa da Igreja Evangélica no Brasil, memória protestante ainda é negligenciada






A rigor, a história do protestantismo no Brasil é quase tão antiga quanto a da chegada das primeiras naus portuguesas, ao raiar do século 16 – uma diferença de pouco mais de cinquenta anos entre o desembarque de Pedro Álvares Cabral e a dos protestantes franceses liderados por Nicolas Villegaignon, que fundaram a França Antártica, no litoral carioca, antes de serem expulsos. Conte-se também o período de permanência dos holandeses no Nordeste, na segunda metade dos anos 1600, quando Maurício de Nassau implantou um protetorado protestante em plena colônia portuguesa católica. Também houve a chegada dos colonos alemães luteranos, a partir de 1824. Mas, em geral, se considera a chegada do primeiro missionário evangélico – o médico escocês Robert Kalley –, em 1855, como o marco inicial da Igreja Evangélica nacional.
A partir dessa época, denominações históricas, como a congregacional, fundada por Kalley, a presbiteriana, a metodista e a batista, chegaram ao país com o objetivo de converter os brasileiros à fé cristã reformada. No entanto, parte considerável dessa trajetória, com seus avanços e percalços, ficou perdida no tempo. Isso porque a preservação da história das igrejas evangélicas no Brasil sempre foi problemática, e atualmente está limitada a algumas instituições (em geral, denominacionais) que se preocupam em resgatar tanto desse passado quanto possível. Tais iniciativas, levadas a cabo muitas vezes apesar da falta de apoio e do desinteresse das lideranças, são um facho de luz sobre as origens e a trajetória do movimento religioso que mais cresce no país.
Um desses lugares é o Centro de Memória Metodista, entidade mantida pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Ele surgiu a partir da decisão do Colégio Episcopal de preservar os arquivos e Museu Histórico do Metodismo Brasileiro. O professor Paulo Ayres Mattos, coordenador do centro, explica que o objetivo é tornar o local uma referência nacional na preservação da memória histórica da denominação, implantada no país na segunda metade do século 19, e do protestantismo brasileiro em geral. “Existe um desconhecimento geral da história da fé protestante no Brasil”, lamenta, “e do testemunho corajoso dos nossos antepassados, que enfrentaram todo tipo de perseguição. Há mesmo um desprezo pelo que Deus fez ao longo de mais de 180 anos de presença evangélica aqui”, aponta Mattos.
O professor reconhece a existência de alguns esforços isolados nesse sentido, mas acha que ainda não se faz isso de maneira organizada – o que é fato, ainda mais levando-se em consideração que poucas iniciativas utilizam os mais atuais recursos tecnológicos disponíveis no campo da arquivologia e museologia. Ele salienta que, para muitas pessoas, há um salto entre o tempo do Novo Testamento e o cristianismo brasileiro contemporâneo. “Mas, se hoje podemos testemunhar o Evangelho com liberdade, devemos isso, em grande parte, ao testemunho fiel de nossos irmãos e irmãs do passado”, lembra. O acervo do centro, que estará acessível ao público em setembro de 2010, é constituído de um grande número de documentos impressos, fotográficos, audiovisuais, eletrônicos e digitais. Nesse material é possível encontrar, por exemplo, xilogravuras de Marco Túlio Cícero do ano de 1518, além de itens raros, como o livro que reúne as obras completas de Platão, de 1538, a Bíblia traduzida por Martinho Lutero, de 1582, e as Institutas da religião cristã, de João Calvino, um dos pais da teologia reformada, datadas de 1592. No mesmo local funcionará o Museu Histórico da Igreja Metodista, com várias peças antigas e raridades.
Outra instituição que se preocupa com a conservação dos registros do passado protestante brasileiro é a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). Há seis anos, foi inaugurado o Museu da Bíblia (MuBi) em Barueri, na Grande São Paulo, onde fica também o parque gráfico da editora. A linha de trabalho do museu, pela própria natureza da instituição mantenedora, é um pouco diferente: a intenção ali é apresentar a história da Bíblia Sagrada, de maneira geral. Por tabela, o MuBi conta ao visitante a história das Sagradas Escrituras no Brasil e a influência da Palavra de Deus na cultura e na vida do povo brasileiro. Para isso, a entidade, além de seu acervo fixo, promove constantemente exposições temáticas e desenvolve iniciativas educacionais.
O diretor do museu, pastor Erní Walter Seibert, ressalta a importância da preservação da história religiosa. “Tem havido um crescimento na consciência da importância de preservar a história”, opina Seibert. Ele fala que esse fenômeno está se intensificando com a celebração de jubileus entre as principais denominações e igrejas brasileiras – caso da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), que acaba de comemorar seu sesquicentenário, e da Assembleia de Deus, que em 2010 começa a festejar cem anos de atividades no país. “Essas celebrações estão propiciando a publicação de obras nas quais a história dessas organizações é registrada”, diz. De fato, a Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD) tem feito diversos lançamentos registrando e valorizando a própria trajetória. Seibert destaca a importância da criação de museus e institutos históricos para a preservação de documentos antigos, colocados à disposição de todos para consulta e pesquisa. “Isso evita a amnésia histórica, tão prejudicial em qualquer área de atividade humana.”


“Eterno retorno” – Esse trabalho de conservação não é fácil. Para formar um acervo, organizações como o MuBi dependem de doações de peças históricas e ajuda financeira para manutenção e desenvolvimento, o que inclui contratação de profissionais e serviços especializados. Parcerias entre organizações com o mesmo propósito também são importantes. A biblioteca do Museu da Bíblia, por exemplo, recebe todas as novas traduções das Escrituras produzidas no mundo. “Isso é possível porque temos parceria tanto com outras sociedades bíblicas quanto com as instituições que traduzem a Palavra de Deus pelo mundo afora”, explica Seibert. Outra dificuldade é o acesso às informações. “Localizar a documentação sobre o metodismo e o protestantismo brasileiros, em suas manifestações religiosas, educacionais e sociais espalhadas pelo país afora – e conseguir a confiança de seus atuais depositários para colocá-la à disposição do público em geral de forma organizada, com acesso fácil e rápido –, é muito complicado”, continua Paulo Ayres. Nessa lista de dificuldades, o pesquisador inclui a falta de recursos que financiem tais iniciativas. “Para isso, é importante que o projeto seja desenvolvido como parte das atividades de uma universidade, o que nos possibilitará, esperamos, acesso a recursos públicos e privados de incentivo a ações culturais”, comenta.
A questão financeira nem sempre é a mais complicada. O dinheiro pode não resolver quando um documento ou material histórico está em mãos de particulares e essa pessoa cria laços de afetividade com o material. “Esses laços afetivos, no entanto, nem sempre se transmitem para a geração seguinte, que descuida desse material e, por vezes, até o descarta, pensando que não tem valor. Isso causa uma perda irrecuperável”, destaca Erní Seibert. Para evitar esse risco, segundo ele, a recomendação é a doação de tais documentos a uma instituição séria. “Ali, o material será preservado e colocado à disposição de toda uma coletividade.”
Foi graças à doação de peças, fotos e documentos que a Igreja Evangélica Fluminense conseguiu montar um museu que é referência para muitos estudantes e pesquisadores do segmento religioso. Localizado numa sala do histórico templo da Rua Camerino, no centro antigo do Rio de Janeiro, a entidade só existe graças à perseverança e à dedicação da bibliotecária aposentada Esther Marques Monteiro, de 84 anos. Ela, que não recebe nada pelo serviço, cuida da Biblioteca Fernandes Braga, com mais de mil volumes que contêm parte da história da Igreja no Brasil. Há também objetos usados pelo pioneiro Robert Kalley, documentos e vasto material fotográfico. “Faço isso porque é importante preservar material tão rico”, diz a anciã. “Infelizmente, as igrejas não dão muito valor às nossas tradições”, constata.
No entender do bispo Mattos, os evangélicos precisam encarar com seriedade a preservação de sua documentação, estabelecendo centros encarregados de cuidar desse material. “Ao longo dos anos, o protestantismo acumulou uma importância histórica reconhecida pelos mais diversos setores da sociedade. Portanto, sem a preservação dessa cultura, estaremos sempre inclinados a cair na tentação do eterno retorno, não tendo referências que nos ajudem a afirmar nossa identidade evangélica”, diz o professor. “É preciso ajudar o povo evangélico a compreender que, sem memória, não sabemos de onde viemos.”
Conservando o presente para as gerações do futuro

Para que não se repita no futuro a dificuldade encontrada hoje em dia no resgate da memória protestante, é importante lembrar que o presente um dia também se transformará em história – por isso, é necessário registrá-lo de maneira sistemática e organizada. Fundado há quarenta anos pela iniciativa de acadêmicos e intelectuais, como Rubem Alves, o Instituto de Pesquisas da Religião (Iser) surgiu com o objetivo de investigar o papel da religião na sociedade brasileira. Com isso, tornou-se fonte de pesquisas e uma referência sobre a trajetória recente da Igreja. A antropóloga Christina Vital, pesquisadora associada da área de Religião e Sociedade do Iser, falou a CRISTIANISMO HOJE sobre o papel do instituto e a relevância de suas pesquisas:
CRISTIANISMO HOJE – Qual é o papel do Iser no registro da história da religião no Brasil?
CHRISTINA VITAL – O Iser é uma organização não-governamental de pesquisa e de intervenção em pautas que articulem religião, direitos humanos e meio ambiente. Há uma equipe de acadêmicos – pós-doutores, doutores, doutorandos e mestres – que compõe o corpo de pesquisadores associados do Iser. Temos uma série de estudos e pesquisas disponibilizados em nosso site, em nossa sede, no Rio de Janeiro, e em bibliotecas universitárias. Nestas últimas, disponibilizamos um periódico, a revista Religião e sociedade, onde são divulgados trabalhos de pesquisadores do Brasil e do exterior sobre o campo religioso nacional e internacional e sobre as diferentes formas de expressão religiosa. Parte da história da manifestação religiosa em nosso país encontra-se em nossas publicações e pesquisas.
Como contornar as falhas das igrejas na preservação de sua própria memória?
Foi-se o tempo em que as instituições e os movimentos sociais precisavam de organizações externas a eles e da universidade para registrar as suas histórias. Hoje, tanto os movimentos quanto as instituições, dentre elas as religiosas, vêm trabalhando para se apresentar à sociedade. Naturalmente, as instituições mais organizadas e com mais recursos podem contar com ajudas profissionais para registrar, resgatar e expor suas histórias e memórias para os membros novos, antigos ou mesmo para a sociedade mais ampla.
Por que a maioria das iniciativas nessa área partem de igrejas consideradas tradicionais?
As igrejas protestantes históricas têm maior tradição de estudo e de diálogo com a academia, de modo que conseguem fazer melhor essa preservação do que as igrejas pentecostais, mesmo as mais antigas. O modelo episcopal partilhado em muitas dessas igrejas históricas é, ainda, importante fator a possibilitar o resgate de uma história e a divulgação – diferentemente das congregações, que têm, muitas vezes, histórias distintas de formação e identidade própria, ainda que ligadas a uma mesma denominação.
Presbiterianos mantêm tradição centenária
É graças ao que alguns chamam “burocracia” que denominações históricas, como a batista e a presbiteriana, conservam registros importantes de seu legado à sociedade. O pastor Ludgero Bonilha Moraes, curador dos dois museus e do arquivo da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), conta que todas as decisões da denominação são arquivadas. “Desde a chegada do primeiro missionário no Brasil, são guardados documentos, atas, relatórios e fotos”, diz o religioso, que também é secretário executivo da IPB. Seu trabalho é garimpar o que há de realmente relevante para a história dos presbiterianos no material enviado pelas igrejas e avaliar que vale a pena ser guardado.
O museu mais importante da denominação, que guarda o maior acervo, está em Campinas (SP), onde também está localizado um dos seminários presbiterianos do país. A outra unidade está em Recife. Já na Catedral Presbiteriana do Rio, templo preservado pelo Patrimônio Histórico, funciona um pequeno e bem cuidado museu que narra ao visitante a história da denominação. Já do lado de fora, há uma estátua interativa do respeitado pastor Mattathias Gomes dos Santos, que liderou a congregação na primeira metade do século 20. Segundo Ludgero, a importância desses espaços é um estímulo para que as igrejas presbiterianas de todo o Brasil conservem seu material histórico. “Muitas coisas nos são enviadas para exposição”, conta o dirigente.
Por Laelie Machado
Fonte: www.cristianismohoje.com.br

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